sábado, 24 de outubro de 2009

"NÓIS MUDEMO"


"NÓIS MUDEMO"

O ônibus da transbrasiliana deslizava pela Belém-Brasília rumo a Porto Nacional . Era abril , mês das derradeiras chuvas . No céu , uma luazona enorme pra namorado nenhum botar defeito . Sob o luar generoso , o cerrado verdejante era um presépio , todo poesia e misticismo .
Mas minha alma estava profundamente amargurada . O encontro daquela tarde , a visão daquele jovem marcado pelo sofrimento , precocemente envelhecido , a crua recordação de um episódio que parecia tão banal... til . Meus olhos percorriam a paisagem enluarada , mas ela nada mais era para mim que o pano de fundo de um drama estúpido e trágico .
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As aulas tinham começado numa segunda-feira . Escola de perife-
ria , classes heterogêneas , retardatários . Entre eles , uma criança crescida , quase um rapaz .
- Por que você faltou esses dias todos ?
- É que nóis mudemo onti, fessora . Nóis veio da fazenda .
Risadinhas da turma .
- Não se diz " nóis mudemo " menino ! A gente deve dizer : nós mudamos , tá ?
- Tá fessora !
- No recreio , as chacotas dos colegas : Oi , nóis mudemo ! Até amanhã , nóis mudemo !
No dia seguinte , a mesma coisa : risadinhas , cochichos, gozações .
- Pai , não vô mais pra escola .
- Oxente ! Módi quê ?
Ouvida a história , o pai coçou a cabeça e disse :
- Meu fio , num deixa a escola por uma bobagem dessa . Não liga pras gozações da mininada ! Logo eles esquece .
Não esqueceram .
Na quarta-feira , dei pela falta do menino . Ele não apareceu no resto da semana, nem na segunda-feira seguinte . Aí me dei conta de que eu nem sabia o nome dele . Procurei no diário de classe e soube que se chamava Lúcio - L-ucio Rodrigues Barbosa . Achei o endereço. Longe , um dos últimos casebres do bairro .
Fui lá , uma tarde . O rapazola tinha partido no dia anterior para cas de um tio , no sul do Pará .

- É , professora , meu fio não aguentou as gozações da mininada . Eu tentei fazê ele continuá , mas não teve jeito . Ele tava chatiado demais . Bosta de vida ! Eu devia di tê ficado na fazenda coa famia . Na cidade nóis não tem veis . Nóis fala tudo errado .

Inexperiente, confusa, sem saber o que dizer, engoli em seco e me despedi .
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O episódio ocorrera há dezessete anos e tinha caído em total esquecimento , ao menos de minha parte .


Uma tarde, num povoado à beira da Belém-Brasília , eu ia pegar o ônibus , quando alguém me chamou . Olhei e vi , acenando para mim , um rapaz pobremente vestido , magro , com aparência doentia .
- O que é, moço ?
- A msenhora não se lembra de mim , fessora ?
Olhei para ele , dei tratos à bola . Reconstituí mum momento meus longos anos de sacerdócio , digo de magistério . Tudo escuro .
- Não me l embro não , moço . Você me conhece ? De onde ? Foi meu aluno ? Como se chama ?
Para tantas perguntas , uma resposta lacônica :
- Eu sou " Nóis Mudemo " , lembra ?
Comecei a tremer .
- Sim , moço . Agora lembro . Como era mesmo seu nome ?
- Lúcio - Lúcio Rodrigues Barbosa .
- O que aconteceu ? Ah ! fessora ! É mais fácil dizê o que não aconteceu . Comi o pão que o diabo amassô . E êta diabo bom de padaria ! Fui garimpeiro , fui bóia fria , um "gato" me arrecadou e levou num caminhão pruma fazenda no meio da mata . Lá trabaiei como escravo , passei fome , fui baleado quando consegui fugi . Peguei fugi .Peguei tudo quanto é doença . Até na cadeia já fui pará . Nóis ignorante às véis fais coisa sem querê fazê . A escola fais uma farta danada . Eu não devia de tê saído daquele jeito , fessora , mas não aguentei as gozações da turma . Eu vi logo que nunca ia consegui falá direito . Ainda hoje não sei .

- Meu Deus !
Aquela revelação me virou do avesso . Foi demais para mim . Descontrolada comecei a soluçar convulsivamente . Como eu podia ter sido tão burra e má ? E abracei o rapaz , que me olhava atarantado .

O ônibus buzinou com insistência .

O rapaz afastou-me de si suavemente .
- Chora não , fessora ! Asenhora não tem curpa .

Como ? Eu não tenho culpa ? Deus do céu !
Entrei no ônibus apinhado . Cem olhos eram flechas vingadoras apontadas para mim . O ônibus partiu . Pensei na minha sala de aula . Eu era uma assassina a caminho da guilhotina .
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Hoje tenho raiva da gramática . Eu mudo , tu mudas , ele muda , nós mudamos , mudamos , mudaamoos, mudaaamooos... Super usada , mal usada , abusada , ela é uma guilhotina dentro da escola . A gramática faz gato e sapato da língua materna - a língua que a criança aprendeu com seus pais e irmãos e colegas - e se torna o terror dos alunos . Em vez de estimular e fazer crescer, comunicando , ela reprime e opri-
me , cobrando centenas de regrinhas estúpidas para aquela idade .


E os Lúcios da vida , os milhares de Lúcios da periferia e do interior , barrados nas salas de aula :" Não é assim que se diz , meni- no !" Como se o professor quisesse dizer : "Você está errado ! Os seus pais estão errados ! Seus irmãos e amigos estão errados ! A certa sou eu ! Imite-me ! Copie-me ! Fale como eu ! Você não seja você ! Renegue suas raízes ! Diminua-se ! Desfigure-se ! Fique no seu lugar ! Seja uma sombra !"

E siga desarmado para o matadouro da vida ...

(Fidêncio Bogo )

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