sábado, 24 de outubro de 2009

A ESCOLA DOS MEUS SONHOS


A ESCOLA DOS MEUS SONHOS (Rubem Alves)

Vou contar um caso de amor. Amor à primeira vista. Eu me apaixonei pela Escola da Ponte. Bastou vê-la para que um passado reverberasse dentro de mim.
Não tenho memórias dolorosas do grupo escolar. As coisas a serem aprendidas eram fáceis e eu as aprendia sem esforço. Mas minha efervescência intelectual - pois as crianças também têm efervescências intelectuais - estava em outro lugar: no mundo que começava quando eu saia da escola.
Eu me levantava às 5 horas e me punha a andar pela casa fazendo barulho. Queria que os adultos dorminhocos despertassem do seu sono para o mundo maravilhoso que aparecia com a luz do dia. Minha curiosidade me levou a desmontar o relógio de pulso de minha mãe, o único que ela tinha. Queria saber como ele funcionava, aquelas engrenagens fascinantes. Infelizmente, não consegui montá-lo de novo.
No grupo escolar, nos ensinavam o que o programa mandava: o nome de serras, Serra da Mata da Corda, do Espinhaço, da Bocaina; o nome de afluentes de rios distantes, dos quais a única coisa que aprendíamos eram... os nomes. O que me foi útil no exame de admissão, porque me perguntaram o nome da segunda maior ilha fluvial do mundo. Tupinambarana. Eu sabia o nome. Mas ainda hoje, nada sei sobre a ilha.
Era tempo da Segunda Guerra Mundial. As batalhas entravam em nossa casa através do rádio. "E Stalingrado continua a resistir." "Aviões aliados martelaram as posições nazistas no vale do Pó." Meu pai afixou um mapa da Europa na parede e nele íamos seguindo os movimentos das tropas. A imaginação corria rápida e eu me sentia como um soldado na frente de batalha. O mapa, os países, o nome das cidades, dos rios, das montanhas - tudo estava vivo para mim.
Conto essas coisas da minha vida de menino para dizer que as crianças são curiosas naturalmente e têm o desejo de aprender. O seu interesse natural desaparece quando, nas escolas, a sua curiosidade é sufocada pelos programas impostos pela burocracia governamental. Através da minha vida tenho estado à procura da escola que daria asas à curiosidade do menino que fui. Pois, de repente, sem que eu esperasse, eu me encontrei com a escola dos meus sonhos. E me apaixonei.

Novas formas de ver
Tudo começou em *19XX, via internet. Comecei a receber e-mails de um desconhecido de Portugal, Ademar Ferreira dos Santos. Uma brasileira lhe havia dado um livrinho meu, Estórias de Quem Gosta de Ensinar. Ele gostou. Sem nos conhecermos pessoalmente, nos descobrimos amigos. Ele me convidou para ir a Portugal e falar aos professores da Universidade de Braga e adolescentes de uma escola secundária.
Fui e fiz. Foi bom. Aí, numa manhã, ele me disse: "Vou levar-te a conhecer uma escola diferente." "Diferente como?", perguntei. "Não é possível dizer-te. Tu verás." Chegamos à escola. Na sua frente havia um pátio arborizado. Lá estava o diretor, professor José Pacheco. Mais tarde, aprendi que ele se recusa a ser chamado de diretor, por razões que explicarei mais tarde.
Minha expectativa era que o diretor, por um mínimo dever de cortesia, haveria de levar-me a conhecer a escola. Homem de poucas palavras, trocamos meia dúzia de banalidades. Vinha passando à nossa frente uma menina de uns nove anos. Ele a chamou e disse: "Tu podes mostrar e explicar a nossa escola ao nosso visitante?" "Pois, pois", respondeu a menina, sem mostrar nenhuma surpresa. Ato contínuo, ele me abandonou e fiquei eu à mercê da menina.

Os primeiros sustos
Eu nunca tinha tido experiência semelhante e nunca imaginei que fosse possível que um diretor entregasse a uma aluna, menina de nove anos, a tarefa de mostrar e explicar a sua escola a um educador estrangeiro.
A menina não se fez de rogada. Encaminhou-se resolutamente na direção da porta da escola e eu, obedientemente, a segui. Chegando à porta, ela parou, voltou-se para mim e disse em voz resoluta e confiante: "Para entender a nossa escola o senhor terá de se esquecer de tudo o que o senhor sabe sobre escolas. Não temos turmas, não temos alunos separados por classes, nossos professores não dão aulas com giz e lousa, não temos campainhas separando o tempo, não temos provas e notas."
Foi o segundo susto. As palavras da menina produziram um vazio na minha cabeça. Porque as escolas que conheço, mesmo as mais experimentais e avançadas, têm professores dando aulas, têm turmas, têm salas de aula que separam as crianças, têm provas e testes, têm notas e boletins para o controle dos pais.

Uma escola sem livros-texto
Perguntei: "E como é que vocês aprendem?" Ela me respondeu: "Formamos um pequeno grupo de seis pessoas em torno de um tema de interesse comum. Convidamos um professor para ser nosso assessor. Ele nos ajuda com informações bibliográficas e de internet. Estabelecemos, de comum acordo, um programa de trabalho de duas semanas. Durante esse tempo, lemos e pesquisamos. Ao cabo de duas semanas, nos reunimos para avaliar o que aprendemos e o que deixamos de aprender."
Percebi logo que naquela escola não podia haver livros-texto. Livros-texto são onde se encontram os saberes que, por escolha e determinação de uma instância burocrática superior, devem ser aprendidos pelos alunos. O conjunto desses saberes se denomina "programa". Mas acontece que a curiosidade não segue os caminhos determinados pela burocracia. Na Escola da Ponte, todos já se deram conta de que não é possível ter livros-texto porque é impossível prever, de antemão, os "temas de interesse comum" que a curiosidade vai eleger.
Sem livros-texto, as crianças têm de aprender a procurar os saberes necessários à compreensão do "tema de interesse comum". E os professores deixam de ser aqueles que sabem os saberes prescritos pelos programas. Eles se encontram permanentemente em suspenso ante o inesperado dos interesses das crianças. Os professores não são aqueles que sabem os saberes. São aqueles que sabem encontrar caminhos para os saberes. De qualquer forma, os saberes já se encontram em livros, bibliotecas, enciclopédias, internet. Acresce-se a isso o fato de que, hoje, os saberes se tornam rapidamente obsoletos.
Se os alunos tiverem os mapas e souberem encontrar o caminho, eles terão sempre condições de descobrir o que sua curiosidade pede. E os professores, por não saberem de antemão o que as crianças querem saber, têm de se tornar aprendizes junto às crianças. O tal "programa de trabalho de duas semanas", de que falou a menina, era para os professores também. Eles ensinam o aprender aprendendo junto. O que é muito mais divertido que ficar, todos os anos, repetindo os mesmos saberes imobilizados pelos programas. Ficar a repetir o que se sabe, ano após ano, é, sem dúvida, uma prática emburrecedora.

Dentro da escola
Andamos um pouco e a menina abriu a porta da escola. Era uma grande sala, com muitas mesinhas, crianças pequenas, crianças grandes, algumas com Síndrome de Down, todas juntas no mesmo espaço. Cada uma fazendo a sua coisa. Estantes com livros. Vários computadores. Algumas crianças lendo ou escrevendo. Outras consultando livros e a internet. Algumas professoras assentadas às mesinhas junto das crianças. Ninguém falava alto. Só sussurros. E ouvia-se, baixinho, música clássica.
Numa parede, em letras grandes, estavam várias frases relativas ao descobrimento do Brasil. Era o ano em que se comemoravam os cinco séculos da descoberta. "Que são essas frases?", perguntei. "Os miúdos [crianças] estão a aprender a ler. Aqui não aprendemos nem letras, nem sílabas. Só aprendemos totalidades. Mas temos de aprender a ordem alfabética para consultar o dicionário." Outro susto: aprender a consultar o dicionário tão cedo?

Os mistérios do dicionário
Ao nosso lado havia uma mesinha em que três meninas trabalhavam. Uma delas consultava um dicionário. Ajoelhei-me ao seu lado, para que nossos olhos estivessem no mesmo nível, e perguntei: "Tu estás a consultar o dicionário?" "Sim", ela me respondeu. "Procuras uma palavra que não conheces?" "Não, conheço a palavra" Eu não entendi e perguntei de novo: "Mas se conheces a palavra por que a procuras no dicionário?" Aí ela me deu uma resposta que me produziu outro susto. "É que estou a produzir um texto para os miúdos e usei uma palavra que, creio, eles não conhecem. Estou, assim, a preparar um pequeno dicionário que colocarei ao pé da página do meu texto para que entendam o que escrevi, posto que ainda não podem consultar o dicionário por não haverem ainda aprendido a ordem alfabética."
Fiquei assombrado. Aquela menina tinha clara consciência dos limites dos conhecimentos dos "miúdos". Ela escrevia pensando neles. Naquela idade, já era uma educadora.

Os quadros de ajuda
Para que aquela menina estivesse escrevendo um texto para as crianças era preciso que não houvesse paredes separando-a dos "miúdos", que eles ocupassem o mesmo espaço e existisse entre eles relações de comunicação, confiança e responsabilidade. O texto que ela escrevia não fora um "dever" que a professora lhe passara. Ela o escrevia a pedido dos alunos mais novos.
Essa rede livre de comunicação, responsabilidade e ajuda estava silenciosamente exibida em dois quadros afixados na parede. Num deles estava escrito Preciso que me ajudem em, no outro, Posso ajudar em. Qualquer aluno que esteja com um problema, antes de procurar a professora, escreve o seu pedido no primeiro quadro: "Preciso que me ajudem em regra de três", e assina o nome, Fátima, por exemplo. Aí, o Sérgio, passando pelo quadro, vê a mensagem da Fátima e pensa: "A Fátima não sabe regra de três. Eu sei. Vou ajudá-la." E isso acontece naturalmente, é parte do cotidiano da escola. Não é preciso pedir licença à professora e nem há hora certa para se fazer isso.
O segundo quadro é o contrário: quando um aluno se sente competente em um saber, ele o anuncia aos colegas e se coloca à disposição. A capacidade de ensinar um saber a alguém vale por uma avaliação. E é o aluno quem a faz. É ele que se sente competente. Assim vão eles praticando as virtudes de ensinar, de aprender e de se ajudarem uns aos outros.

O grande tribunal
Eu me encontrava num estado de perplexidade. Como explicar aquilo que eu via acontecendo? Ninguém falando alto, nenhuma professora pedindo silêncio, todos trabalhando, a música clássica. Aquilo não podia ser toda a verdade. Deveria haver algo mais. Perguntei à menina: "Mas vocês não têm alunos agressivos, indisciplinados, que gritam e perturbam a ordem?" "Temos. Mas para isso temos o tribunal de alunos. Quando um menino ou menina se comporta de maneira a perturbar a ordem nos termos que nós mesmos estabelecemos, o tribunal entra em ação e providências disciplinares são tomadas."
"Que coisa maravilhosa", eu pensei. Uma escola onde os professores não são responsáveis pela disciplina. E nem o diretor é a instância punitiva última, para onde são enviados os desordeiros. É a comunidades das crianças que cuida disso. Professores e diretor podem, assim, se dedicar aos desafios prazerosos de aprender junto com os alunos.

O último julgamento
Voltei à Escola da Ponte em *19XX. Perguntei sobre o tribunal. O professor José Pacheco contou-me que o tribunal não existia mais. Fora abolido pela assembléia. Percebeu-se que ele era uma instância de punição e não de recuperação. E passou a relatar-me o incidente que produzira a sua dissolução.
Um aluno violento fora levado ao tribunal para responder por uma agressão. A assembléia da escola nomeou, como de praxe, um advogado de acusação. O réu escolheu um colega para defendê-lo. A assembléia se reuniu para o julgamento.
"A acusação foi devastadora", disse-me o professor José Pacheco. "Reuniu as provas e estabeleceu de forma cabal a culpa do réu. Eu pensei: ele está perdido, não há saída. Entrou em ação o advogado de defesa. Ele não negou o que fora apresentado pela acusação, nem apresentou fatos que minimizassem a culpa do réu. Mas lembrou aos membros do tribunal que todos eles eram cristãos, freqüentavam a missa e o catecismo. E que, na igreja, se ensinava que o amor nos leva a ajudar aqueles que estão em dificuldades. Concluiu: 'Pois esse colega tem estado em dificuldades há muito tempo e todos sabíamos disso. E agora estamos prontos a puni-lo. Antes que o tribunal dê a sentença, e em nome da nossa coerência, quero que respondamos o que fizemos para ajudá-lo.'"
Esse foi o fim do tribunal. No seu lugar estabeleceu-se uma comissão de ajuda. Hoje, na Escola da Ponte, quando algum aluno começa a apresentar problemas de comportamento, essa comissão se adianta e nomeia colegas para ajudá-lo, com a missão de estar sempre por perto do dito aluno. E quando se percebe que ele vai fazer algo inadequado, os colegas entram em ação para tentar dissuadi-lo.

O direito à alegria
A menina continuou a me guiar. Chegamos a uma mesa onde estava trabalhando uma aluna com Síndrome de Down. Vi a garota e pensei sobre sua convivência mansa com os seus colegas. Senti que sua presença ali era algo normal e feliz na rede de relação de solidariedade e de aprendizado que constitui a escola. Aquela menina era parte dessa rede. Com algumas peculiaridades e limitações, é claro. Mas, como todos os outros, ela se dedicava a aprender.
Se me perguntarem se ela conseguia seguir o programa, eu responderia dizendo que não há um programa a ser seguido numa ordem certa e num mesmo ritmo. Cada criança é única, com seus próprios sonhos, ritmos e interesses. A escola não pode destruir essa criança para amoldá-la a uma "forma".
O objetivo da escola é criar um espaço em que cada criança possa pensar os seus sonhos e realizar aquilo que lhe é possível, no ritmo que lhe é possível. Pensei que, nas escolas da minha memória, é comum que a preocupação dominante dos professores seja dar o programa. É isso que a administração pede deles. Não é incomum que professores, em conversas, falem em que lugar da "corrida" dos programas eles se encontram. É compreensível. Como partes da máquina burocrática, eles perderam a liberdade e se esqueceram dos sonhos antigos.
A educação não tem como objetivo preparar os alunos para ingressar no mercado de trabalho. O objetivo é criar as condições possíveis para a experiência da alegria. Porque é para isso que vivemos. A escola deve ser um espaço em que isso acontece. Parte das potencialidades daquela menininha têm a ver com saber viver no mundo dos ditos "normais". E parte das potencialidades das crianças ditas "normais" tem a ver com saber conviver com crianças diferentes - e ajudá-las. Isso também é alegria. Esse aprendizado de solidariedade é mais importante do que qualquer conteúdo de programa.

Só aprendemos o que usamos
Pensei: o que são programas? Programas são uma organização lógica de saberes dispostos numa ordem linear e que devem ser aprendidos numa velocidade igual, como se todos estivessem numa linha de montagem de uma fábrica.
Sobre que pressupostos se constroem os programas? Bem, o primeiro costuma ser mais ou menos assim: "A aprendizagem se dá numa relação entre o saber, abstratamente definido, e a inteligência da criança. A mediação entre saberes e inteligência se dá através da didática. Se a aprendizagem não acontece, o problema se encontra ou na inteligência deficiente da criança ou numa didática inadequada."
Um segundo pressuposto prega que "todas as crianças são iguais". É só isso o que justifica que os mesmos saberes sejam dados a todas as crianças. Mas isso é patentemente falso. Os sonhos das crianças das praias de Alagoas, das montanhas de Minas Gerais, da Amazônia, das favelas, dos condomínios ricos, não são os mesmos. Então, qual é o sentido instrumental dos saberes abstratos igualmente prescritos a todas as crianças pelos programas? Não admira que sejam logo esquecidos. Só realmente aprendemos aquilo que usamos.
"Todas as crianças têm o mesmo ritmo. Por isso as crianças têm de aprender no ritmo em que as aulas são dadas." Ah, o ritmo das aulas. Toca a campainha, é hora de pensar português. Toca a campainha, é hora de parar de pensar português e começar a pensar matemática. Toca a campainha, é hora de parar de pensar matemática e começar a pensar geografia. E assim por diante. O ritmo e a fragmentação das aulas está em completo desacordo com tudo o que sabemos sobre o processo de pensamento. Não é possível dar ordens ao pensamento para que ele pare de pensar numa coisa numa certa hora e comece a pensar em outra.
Mas há ainda um quarto pressuposto: "A avaliação da aprendizagem se faz por meio de provas e testes e os seus resultados são expressos em números". Confesso ainda não ter compreendido a função pedagógica desse procedimento. Sobre isso há muito a ser escrito.

Grandes horizontes
Na Escola da Ponte não há programas. Isso não quer dizer que a aprendizagem aconteça ao sabor dos desejos das crianças. Imagine um homem do campo, que só conheça as comidas mais simples: polenta, feijão, abobrinha, picadinho de carne. Imagine que ele venha à cidade e seja levado por um amigo a um restaurante. "Que é que o senhor deseja?", lhe perguntaria o garçom.
Ele certamente responderia falando de polenta, feijão, abobrinha, picadinho de carne, pois esse é o seu repertório de pratos. Aí, o amigo lhe diria: "Quero sugerir que você experimente uns pratos diferentes."
Assim acontece na relação entre professores e alunos. Os professores sabem mais. É por isso que são professores. E uma de suas tarefas é "seduzir" as crianças para coisas que elas ainda não experimentaram. Eles lhes apontam coisas que nunca viram e as introduzem num mundo desconhecido de arte, literatura, música, natureza, lugares, história, costumes, ciências, matemática. "A primeira tarefa da educação é ensinar a ver", dizia *Nietzsche. Não é obrigatório que elas gostem do que vêem. Mas é importante que seus horizontes se alarguem.

O direito de não ler
O dia na Escola da Ponte se inicia de uma forma inusitada. Cada criança se assenta onde quer e escreve numa folha de caderno o seu plano de trabalho para aquele dia. Esse plano de trabalho está ligado ao seu projeto de investigação. Ao final do dia, comparando o realizado com o planejado, ela poderá avaliar o quanto caminhou. Eu imagino que deveria ser mais ou menos assim que o trabalho acontecia nas oficinas artesanais e de arte do Renascimento: os aprendizes trabalhavam num projeto artesanal, ou de escultura, pintura, e, vez por outra, o mestre aparecia para avaliar, corrigir, sugerir. Toda avaliação tem de contribuir para que o aluno aprenda mais e o trabalho fique melhor.
Andando na Escola da Ponte, encontro um cartaz cujo título era: Direitos e deveres das crianças em relação aos livros. O primeiro direito me deu um susto tão grande que nem li os outros. Foi susto por ser inesperado. Mas foi um susto bom. Até ri. Dizia assim: "Toda criança tem o direito de não ler o livro de que não gosta". Esse direito sempre me pareceu óbvio. Mas eu nunca o havia visto assim escrito de forma clara, numa escola, para que os alunos o lessem. As escolas da minha memória jamais fariam isso. Porque é parte do seu dever burocrático fazer com que as crianças leiam os livros de que não gostam.
Há professores que ensinam literatura para desenvolver uma postura crítica nos seus alunos. Mas esse não é o objetivo da literatura. Lê-se pelo prazer de ler. Por isso, refugo quando pessoas falam sobre a importância de desenvolver o hábito de leitura. Isso é o mesmo que dizer que é preciso desenvolver nos maridos o hábito de beijar a mulher. Hábitos são comportamentos automatizados que nada têm a ver com prazer. Lê-se pela mesma razão que se dá um beijo amoroso: porque é deleitoso, porque dá prazer ao corpo e alegria à alma.

As duas caixas do ser humano
Já resumi minha teoria de educação dizendo que o corpo carrega duas caixas. Uma delas é a "caixa de ferramentas", onde se encontram todos os saberes instrumentais, que nos ajudam a fazer coisas. Esses saberes nos dão os "meios para viver". Mas há também uma "caixa de brinquedos". Brinquedos não são ferramentas. Não servem para nada. Brincamos porque o brincar nos dá prazer. É nessa caixa que se encontram a poesia, a literatura, a pintura, os jogos amorosos, a contemplação da natureza. Esses saberes, que para nada servem, nos dão "razões para viver".
A "caixa de ferramentas" guarda muitos livros: manuais, listas telefônicas, livros de ciências. Na "caixa de brinquedos" estão os livros de literatura e poesia que devem ser lidos pelo prazer que nos dão. Obrigar uma criança ou adolescente a ler um livro de que não gosta só tem um resultado: desenvolver o ódio pela leitura. É o que acontece com os jovens que, preparando-se para o vestibular, são obrigados a ler os "resumos". A receita certa para destruir o prazer da leitura é colocar um teste ao seu final para avaliar o aprendido. Ou pedir que se faça um fichamento do livro lido.

Leis e direitos
Numa parede da escola se encontravam as "leis". Mais importante que as leis era o fato de que elas tinham sido sugeridas e aprovadas pela assembléia de alunos. Aquele documento representava a vontade coletiva de crianças, professores e funcionários. Era o seu "pacto social" de convivência. Lembro-me de alguns itens. "Todas as pessoas têm o direito de dizer o que pensam sem medo." "Ninguém pode ser interrompido quando está falando." " Não se deve arrastar as cadeiras fazendo barulho."
O item que mais me comoveu e que é revelador da alma daquelas crianças foi esse: "Temos o direito de ouvir música enquanto trabalhamos para pensar em silêncio." Entendi, então, a razão da música clássica que se ouvia baixinho.

Acho bem e Acho Mau
Ao final da minha caminhada inaugural pela Escola da Ponte, a menina me indicou um computador. "Nesse computador se encontram dois arquivos", ela explicou. "Um se chama Acho bem, o outro, Acho mal." Qualquer pessoa pode usar o computador para comunicar aos outros o que acha bem e o que acha mal. Um ninho de passarinho num galho de árvore, um ato do presidente da República, o aniversário de um colega, um livro divertido - tudo isso pode estar no Acho bem. No Acho mal, eu encontrei: "Acho mal que o Fernando fique a dar estalos na cara da Marcela" Pensei logo: "Esse é candidato ao tribunal..."
As crianças haviam aprendido que há palavras grosseiras, chulas, que não devem ser usadas. No seu lugar usam-se outras palavras sinônimas. É o caso do verbo "cagar", que não deve ser usado em situação alguma. Mas pode-se usar o sinônimo "defecar" que, sem ser elegante, pelo menos não ofende. Pois uma menina escreveu: "Acho mal que os meninos vão a defecar na privada e deixem a tampa toda cagada". Menina genial! Ela sabia que o dicionário estava errado. Cagar e defecar não são palavras sinônimas, muito embora o dicionário assim o declare. Se ela tivesse escrito "acho mal que os meninos vão a defecar na privada e deixem a tampa toda defecada", sua indignação teria perdido toda a força literária. Porque aquilo que os meninos faziam na tampa da privada não era defecar; era "cagar" mesmo, uma coisa chula e grosseira.

Pedagogia das totalidades
A menina já me havia informado do princípio central da pedagogia da Escola da Ponte, ao me explicar como os miúdos aprendiam a ler: "Aqui não aprendemos nem letras e nem sílabas. Só aprendemos totalidades." As disciplinas isoladas são o resultado da tendência de análise e especialização que caracterizam o desenvolvimento das ciências ocidentais. A Nona Sinfonia, de *Betthoven, não é o conjunto de suas notas. Ela não se inicia com notas e acordes. A totalidade vem primeiro e é só em relação a ela que as partes têm sentido. Assim é o corpo: uma entidade musical. Nenhuma de suas partes tem sentido em si mesma. É a melodia central do corpo que faz as partes dançar. Mas os nossos jovens, diante do vestibular - e é preciso não esquecer que os programas das escolas se orientam no sentido de preparar para o vestibular - trazem consigo as partes desmembradas de um corpo morto: uma soma enorme de informações que não formam um todo significativo. Física, química, biologia, história, geografia, literatura, como se relacionam? Fazem-se então esforços inúteis de interdisciplinaridade. Inúteis porque o todo não se constrói juntando-se a partes.

Brincar é coisa séria
A Escola da Ponte me mostrou um mundo novo em que crianças e adultos convivem como amigos na fascinante experiência de descoberta do mundo. Aprender é muito divertido. Cada objeto a ser aprendido é um brinquedo. Pensar é brincar com as coisas. Brincar é coisa séria. Assim, brincar é a coisa séria que é divertida.
Quando falo que me apaixonei pela Escola da Ponte estou dizendo que amo aquelas crianças. Gosto delas. E elas também gostam de mim. Voltar à Escola da Ponte já está se tornando rotina. Quando lá chego, sou afogado por centenas de "beijinhos". Comove-me a amizade daquelas crianças. Sinto que o maior prêmio para um professor é quando os alunos se tornam amigos dele. Um verdadeiro professor nunca sofre de solidão.
Uma entrevistadora brasileira perguntou a uma menina: "Quem é Rubem Alves?" A menina respondeu: "É um velhinho que conta estórias." As crianças podem me chamar de velhinho. Não me importo. Mas somente elas.

"NÓIS MUDEMO"


"NÓIS MUDEMO"

O ônibus da transbrasiliana deslizava pela Belém-Brasília rumo a Porto Nacional . Era abril , mês das derradeiras chuvas . No céu , uma luazona enorme pra namorado nenhum botar defeito . Sob o luar generoso , o cerrado verdejante era um presépio , todo poesia e misticismo .
Mas minha alma estava profundamente amargurada . O encontro daquela tarde , a visão daquele jovem marcado pelo sofrimento , precocemente envelhecido , a crua recordação de um episódio que parecia tão banal... til . Meus olhos percorriam a paisagem enluarada , mas ela nada mais era para mim que o pano de fundo de um drama estúpido e trágico .
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As aulas tinham começado numa segunda-feira . Escola de perife-
ria , classes heterogêneas , retardatários . Entre eles , uma criança crescida , quase um rapaz .
- Por que você faltou esses dias todos ?
- É que nóis mudemo onti, fessora . Nóis veio da fazenda .
Risadinhas da turma .
- Não se diz " nóis mudemo " menino ! A gente deve dizer : nós mudamos , tá ?
- Tá fessora !
- No recreio , as chacotas dos colegas : Oi , nóis mudemo ! Até amanhã , nóis mudemo !
No dia seguinte , a mesma coisa : risadinhas , cochichos, gozações .
- Pai , não vô mais pra escola .
- Oxente ! Módi quê ?
Ouvida a história , o pai coçou a cabeça e disse :
- Meu fio , num deixa a escola por uma bobagem dessa . Não liga pras gozações da mininada ! Logo eles esquece .
Não esqueceram .
Na quarta-feira , dei pela falta do menino . Ele não apareceu no resto da semana, nem na segunda-feira seguinte . Aí me dei conta de que eu nem sabia o nome dele . Procurei no diário de classe e soube que se chamava Lúcio - L-ucio Rodrigues Barbosa . Achei o endereço. Longe , um dos últimos casebres do bairro .
Fui lá , uma tarde . O rapazola tinha partido no dia anterior para cas de um tio , no sul do Pará .

- É , professora , meu fio não aguentou as gozações da mininada . Eu tentei fazê ele continuá , mas não teve jeito . Ele tava chatiado demais . Bosta de vida ! Eu devia di tê ficado na fazenda coa famia . Na cidade nóis não tem veis . Nóis fala tudo errado .

Inexperiente, confusa, sem saber o que dizer, engoli em seco e me despedi .
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O episódio ocorrera há dezessete anos e tinha caído em total esquecimento , ao menos de minha parte .


Uma tarde, num povoado à beira da Belém-Brasília , eu ia pegar o ônibus , quando alguém me chamou . Olhei e vi , acenando para mim , um rapaz pobremente vestido , magro , com aparência doentia .
- O que é, moço ?
- A msenhora não se lembra de mim , fessora ?
Olhei para ele , dei tratos à bola . Reconstituí mum momento meus longos anos de sacerdócio , digo de magistério . Tudo escuro .
- Não me l embro não , moço . Você me conhece ? De onde ? Foi meu aluno ? Como se chama ?
Para tantas perguntas , uma resposta lacônica :
- Eu sou " Nóis Mudemo " , lembra ?
Comecei a tremer .
- Sim , moço . Agora lembro . Como era mesmo seu nome ?
- Lúcio - Lúcio Rodrigues Barbosa .
- O que aconteceu ? Ah ! fessora ! É mais fácil dizê o que não aconteceu . Comi o pão que o diabo amassô . E êta diabo bom de padaria ! Fui garimpeiro , fui bóia fria , um "gato" me arrecadou e levou num caminhão pruma fazenda no meio da mata . Lá trabaiei como escravo , passei fome , fui baleado quando consegui fugi . Peguei fugi .Peguei tudo quanto é doença . Até na cadeia já fui pará . Nóis ignorante às véis fais coisa sem querê fazê . A escola fais uma farta danada . Eu não devia de tê saído daquele jeito , fessora , mas não aguentei as gozações da turma . Eu vi logo que nunca ia consegui falá direito . Ainda hoje não sei .

- Meu Deus !
Aquela revelação me virou do avesso . Foi demais para mim . Descontrolada comecei a soluçar convulsivamente . Como eu podia ter sido tão burra e má ? E abracei o rapaz , que me olhava atarantado .

O ônibus buzinou com insistência .

O rapaz afastou-me de si suavemente .
- Chora não , fessora ! Asenhora não tem curpa .

Como ? Eu não tenho culpa ? Deus do céu !
Entrei no ônibus apinhado . Cem olhos eram flechas vingadoras apontadas para mim . O ônibus partiu . Pensei na minha sala de aula . Eu era uma assassina a caminho da guilhotina .
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Hoje tenho raiva da gramática . Eu mudo , tu mudas , ele muda , nós mudamos , mudamos , mudaamoos, mudaaamooos... Super usada , mal usada , abusada , ela é uma guilhotina dentro da escola . A gramática faz gato e sapato da língua materna - a língua que a criança aprendeu com seus pais e irmãos e colegas - e se torna o terror dos alunos . Em vez de estimular e fazer crescer, comunicando , ela reprime e opri-
me , cobrando centenas de regrinhas estúpidas para aquela idade .


E os Lúcios da vida , os milhares de Lúcios da periferia e do interior , barrados nas salas de aula :" Não é assim que se diz , meni- no !" Como se o professor quisesse dizer : "Você está errado ! Os seus pais estão errados ! Seus irmãos e amigos estão errados ! A certa sou eu ! Imite-me ! Copie-me ! Fale como eu ! Você não seja você ! Renegue suas raízes ! Diminua-se ! Desfigure-se ! Fique no seu lugar ! Seja uma sombra !"

E siga desarmado para o matadouro da vida ...

(Fidêncio Bogo )

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

PARA REFLETIR








para refletir:

"Sobre os vestibulares:
Se eu fizer os exames vestibulares, não passarei.
E se o novo reitor da UNICAMP fizer os vestibulares, não passará.
Se o Ministro da Educação fizer os vestibulares, não passará.
Se os professores das universidades fizerem os vestibulares, não passarão.
Se os professores dos cursinhos que preparam os alunos para passar nos vestibulares fizerem os vestibulares, não passarão (cada professor só passará na disciplina em que é especialista...).
Se aqueles que preparam as questões para os vestibulares fizerem os vestibulares, não passarão.
Então me digam, por favor: por que é que os jovens adolescentes têm de passar no vestibular?
Os vestibulares são um desperdício de tempo, de dinheiro, de vida e de inteligência.
Passados os exames, a memória (inteligente) se encarrega de esquecer tudo
A memória não carrega peso inútil. " - RUBEM ALVES




Na escola dos meus sonhos, os alunos aprendem a cozinhar, costurar, consertar eletrodomésticos, a fazer pequenos reparos de eletricidade e de instalações hidráulicas, a conhecer mecânica de automóvel e de geladeira e algo de construção civil. Trabalham em horta, marcenaria e oficinas de escultura, desenho, pintura e música. Cantam no coro e tocam na orquestra. Uma semana ao ano integram-se, na cidade, ao trabalho de lixeiros, enfermeiras, carteiros, guardas de trânsito, policiais, repórteres, feirantes e cozinheiros profissionais. Assim aprendem como a cidade se articula por baixo, mergulhando em suas conexões que, à superfície, nos asseguram limpeza urbana, socorro de saúde, segurança, informação e alimentação.

Não há temas tabus. Todas as situações-limite da vida são tratadas com abertura e profundidade: dor, perda, falência, parto, morte, enfermidade, sexualidade e espiritualidade. Ali os alunos aprendem o texto dentro do contexto: a Matemática busca exemplos na corrupção dos precatórios e nos leilões das privatizações; o Português, na fala dos apresentadores de TV e nos textos de jornais; a Geografia, nos suplementos de turismo e nos conflitos internacionais; a Física, nas corridas de Fórmula-1 e nas pesquisas do supertelescópio Huble; a Química, na qualidade dos cosméticos e na culinária; a História, na violência de policiais contra cidadãos, para mostrar os
antecedentes na relação colonizadores - índios, senhores - escravos, Exército - Canudos, etc.

Na escola dos meus sonhos, a interdisciplinaridade permite que os professores de Biologia e de Educação Física se complementem; a multidisciplinaridade faz com que a História do livro seja estudada a partir da análise de textos bíblicos; a transdisciplinaridade introduz aulas de meditação e dança e associa a história da arte à história das ideologias e das expressões litúrgicas. Se a escola for laica, o ensino religioso é plural: o rabino fala do judaísmo, o pai-de-santo, do candomblé; o padre, do catolicismo; o médium, do espiritismo; o pastor, do protestantismo; o guru, do budismo, etc. Se for católica, há periódicos retiros espirituais e adequação do currículo ao calendário litúrgico da Igreja. Na escola dos meus sonhos, os professores são obrigados a fazer periódicos treinamentos e cursos de capacitação e só são admitidos se, além da competência, comungam os princípios fundamentais da proposta pedagógica e didática. Porque é uma escola com ideologia, visão de mundo e perfil definido do que sejam democracia e cidadania. Essa escola não forma consumidores, mas cidadãos.

Ela não briga com a TV, mas leva-a para a sala de aula: são exibidos vídeos de anúncios e programas e, em seguida, analisados criticamente. A publicidade do iogurte é debatida; o produto adquirido; sua química, analisada e comparada com a fórmula declarada pelo fabricante; as incompatibilidades denunciadas, bem como os fatores porventura nocivos à saúde. O programa de auditório de domingo é destrinchado: a proposta de vida subjacente, a visão de felicidade, a relação animador-platéia, os tabus e preconceitos reforçados, etc. Em suma, não se fecham os olhos à realidade, muda-se a ótica de encará-la. Há uma integração entre escola, família e sociedade. A Política, com P maiúsculo, é disciplina obrigatória. As eleições para o grêmio ou diretório estudantil são levadas a sério e, um mês por ano, setores não vitais da instituição são administrados pelos próprios alunos. Os políticos e candidatos são convidados para debates e seus discursos analisados e comparados às suas práticas.

Não há provas baseadas no prodígio da memória nem na sorte da múltipla escolha. Como fazia meu velho mestre Geraldo França de Lima, professor de História (hoje romancista e membro da Academia Brasileira de Letras), no dia da prova sobre a Independência do Brasil, os alunos traziam para a classe a bibliografia pertinente e, dadas as questões, consultavam os textos, aprendendo a pesquisar. Não há coincidência entre o calendário gregoriano e o curricular. João pode cursar a 5ª série em seis meses ou em seis anos, dependendo de sua disponibilidade, aptidão e seus recursos. É mais importante educar do que instruir; formar pessoas que profissionais; ensinar a mudar o mundo que ascender à elite. Dentro de uma concepção holística, ali a ecologia vai do meio ambiente aos cuidados com nossa unidade corpo-espírito e o enfoque curricular estabelece conexões com o noticiário da mídia.

Na escola dos meus sonhos, os professores são bem pagos e não precisam pular de colégio em colégio para se poderem manter. Pois é a escola de uma sociedade em que educação não é privilégio, mas direito universal, e o acesso a ela, dever obrigatório.



O autor Frei Betto é escritor, autor do romance "O Vencedor" (Ática), entre outros livros.






"Da gramática, guardo a memória dos maus meses que em menino passei decorando, sem nada entender, os esoterismos do Augusto Freire da Silva. Ficou-me da "bomba" que levei, e da papagueação, uma revolta surda contra a gramática e gramáticos, e uma certeza: a gramática fará letrudos, não faz escritores", escreve Monteiro Lobato ao escritor Godofredo Rangel, seu amigo e correspondente.


"...O estudo da gramática não faz poetas. O estudo da harmonia não faz compositores. O estudo da psicologia não faz pessoas equilibradas. O estudo das "ciências da educação" não faz educadores. Educadores não podem ser produzidos. Educadores nascem. O que se pode fazer é ajudá-los a nascer. Para isso eu falo e escrevo: para que eles tenham coragem de nascer... " - Rubem Alves

"Queremos ver crianças perseguindo o conhecimento, e não o conhecimento perseguindo crianças. " George Bernard Shaw

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

DESABAFO DE UM PAI



Uma escola revolucionária


"Saber, não fazer, é não saber."

Eu odeio as escolas do mundo, eu odeio as escolas que ensinam decoreba para as crianças. Simplesmente não funciona, não resolve.

A minha filha de 4 anos estuda hoje em uma escola de mente aberta que não obriga ela a decorar NADA. Nas reuniões que reunem os pais, a diretora pedagógica da escola da minha filha não consegue explicar direito qual é o método que eles usam. Não é o método tradicional, não é o método Montessori, não é nenhum método conhecido, eles estão experimentando coisas novas, misturando escolas diferentes, experimentando de tudo; a maioria dos pais e mães acham isso um absurdo, mas eu gosto da idéia, e tô pagando para ver.

A minha filha é super feliz nessa escola. Ela brinca prá caramba e tem várias amiguinhas de diferentes níveis sociais; não sabe muito de matemática, mas já conhece as poesias de Carlos Drummond de Andrade, já ouviu um sanfoneiro tocar uma sanfona, e se recusa a conversar com adultos mal educados, que falam em voz alta, gritam, ou não sabem falar "muito obrigado", "desculpe" ou "por favor".

Por outro lado, eu tenho amigos com filhos de 4 ou 5 anos que estudam em escolas tradicionais que ensinam a eles a levantar quando o professor entra na sala e a cantar o hino nacional todos os dias pela manhã. A minha esposa fica preocupada porque acha que a nossa filha está atrasada, mas eu não tô nem aí se a minha filha ainda não sabe ler X coisas, ou escrever o nome do presidente da república.

Eu odeio as escolas tradicionais, e acredito que a educação precisa de uma revolução.

As escolas precisam se reinventar!!!

As escolas precisam conhecer a ESCOLA DA PONTE!

Alguém aqui já ouviu falar da Escola da Ponte em Portugal?

"Educar é mais do que preparar alunos para fazer exames, mais do que decorar a tabuada, mais do que saber papaguear ou aplicar fórmulas matemáticas. É ajudar as crianças a entender o mundo, a realizarem-se como pessoas, muito para além do tempo de escolarização".
Esse é o pensamento que norteia a filosofia da Escola da Ponte, uma instituição pública de ensino que fica em Portugal.

Idealizada pelo educador lusitano José Pacheceo, e fundada em 1976, a escola é o modelo de um sistema pedagógico inovador, inspirado dos ideais de educação libertária de pensadores como Edgard Morim, e o brasileiro Paulo Freire.

Na Escola da Ponte não há salas de aula, séries ou curso determinado. A Escola da Ponte é a verdadeira Escola de Atenas (referência àquela pintura que eu já mostrei por aqui várias vezes feita por Rafael séculos atrás).

Na Escola da Ponte o aprendizado é autônomo. Cada aluno escolhe o que quer aprender. Eles elaboram seus planos de estudo e desenvolvem projetos, individuais ou em grupo. Professores lá trabalham conjuntamente com os alunos, não havendo diferença hierárquica entre eles. Não há um diretor.

Provas??? Só quando o aluno quiser, ou melhor, quando sentir que já aprendeu e está preparado para ser avaliado. E é ele quem procura o professor e solicita a avaliação.

"As nossas crianças não são educadas apenas para a autonomia, mas através dela, nas margens de uma liberdade matizada pela exigência da responsabilidade", explica Pacheco.

Mas para chegar a esse ponto, os alunos passam por um longo aprendizado de múltiplas disciplinas.

"Para os que vêm de outras escollas e confundem liberdade com libertinagem, não sabem o que querem, somos nós que dizemos o que devem aprender e quando devem ser avaliados. Não somos doidos", esclarece Pacheco.

A escola é pequena, tem cerca de 200 alunos, com idades entre 5 e 13 anos. Pequena no tamanho, mas grande na proposta pedagócica, a ponto de fazer o educador Rubem Alves se encantar. "Quando vi a Escola da Ponte fiquei alegre e repeti, para ela, o que Fernando Pessoa havia dito para uma mulher amada: "Quando te vi, amei-te já muito antes...", conta Rubem.

"A primeira vez que visitei a Escola da Ponte quem me apresentou a escola foi uma menina de 9 anos", conta Rubem Alves, "Para entender a nossa escola, o senhor terá que esquecer tudo o que entende sobre escolas. Não temos professores dando aulda. Não temos turmas separadas, nem campainhas separando os tempos de pensar", "Como nós aprendemos? Os alunos formam pequenos grupos e escolhem um tema que desejam trabalhar. O que o professor vai fazer? Ele dá as informações bibliográficas e de pesquisa na internet, estabelecendo com os alunos o programa de trabalho, de investigação e de leitura. Por duas semanas, eles lêem, investigam, pesquisam na internet. Todo mundo está trabalhando. Não tem ninguém dando aulas. Os alunos estão investigando, trabalhando e ao final de duas semanas eles reúnem-se para conversar sobre o que aprenderam. Quando se sentem prontos para serem avaliados, solicitam as provas."
É possível implementar a Escola da Ponte no seu bairro?

É possível implementar a Escola da Ponte no Brasil inteiro?

Por que não?

O web site da Escola da Ponte é feinho, mas tem algumas pérolas shows de bola sobre o projeto da escola. Um exemplo é o projeto pedagógico da Escola da Ponte disponível na web para você ler, compreender, e porque não implementá-la na sua cidade, ou mostrar para os diretores da escola mais próxima da sua casa. Outra pérola é o documento original de 1996 sobre o projeto inicial da escola.

QUEBRA TUDO na Escola!!

Ricardo Jordão Magalhães

fonte: http://www.administradores.com.br/artigos/uma_escola_revolucionaria/27059/


ENTREVISTAS COM EDUCADOR JOSÉ PACHECO


"Trabalho há mais de 30 anos com escola que não tem aula, série e prova, e dá certo", diz educador português

Simone Harnik

Idealizador da Escola da Ponte, em Portugal, instituição que, em 1976, iniciou um projeto no qual os estudantes aprendem sem salas de aula, divisão de turmas ou disciplinas, o educador português José Pacheco afirma que as escolas tradicionais são um desperdício para os estudantes e os professores.

"O que fiz por mais de 30 anos foi uma escola onde não há aula, onde não há série, horário, diretor. E é a melhor escola nas provas nacionais e nos vestibulares", diz. "Dar aula não serve para nada. É necessário um outro tipo de trabalho, que requer muito estudo, muito tempo e muita reflexão."



Aos 58 anos, o professor que classifica autores como Jean Piaget como "fósseis", fez uma peregrinação pelo país. No trabalho de prospecção de boas iniciativas em colégios brasileiros, Pacheco só não conheceu instituições do Acre e do Amapá e diz ter somado cerca de 300 voos no último ano.

Com a experiência das viagens, escreveu dois livros de crônicas: o "Pequeno Dicionário de Absurdos em Educação", da editora Artmed, e o "Pequeno Dicionário das Utopias da Educação", da editora Wak. Aponta ainda que a educação brasileira não precisa de mais recursos para melhorar: "O Brasil tem tudo o que precisa, tem todos os recursos e os desperdiça". Veja a entrevista:


UOL Educação - Em suas andanças pelo país, qual o absurdo que mais chamou sua atenção?

Pacheco - O maior absurdo é que a educação do Brasil não precisa de recursos para melhorar. O Brasil tem tudo o que precisa, tem todos os recursos e os desperdiça.

UOL Educação - Desperdiça como?

Pacheco - Pelo tipo de organização. A começar pelo próprio Ministério da Educação. Eu brinco, por vezes, dizendo que o melhor que se poderia fazer pela educação no Brasil era extinguir o Ministério da Educação. Era a primeira grande política educativa.

UOL Educação - Qual o problema do ministério?

Pacheco - Toda a burocracia do Ministério da Educação que se estende até a base, porque a burocracia também existe nas escolas, à imagem e semelhança do ministério. No próprio ministério, o contraste entre a utopia e o absurdo também existe. Conheço gente da máxima competência, gente honesta. O problema é que, com gente tão boa, as coisas não funcionam porque o modo burocrático vertical não funciona. É um desperdício tremendo.

UOL Educação - Como resolver?

Pacheco - Teria de haver uma diferente concepção de gestão pública, uma diferente concepção de educação e uma revisão de tudo o que é o trabalho.

UOL Educação - O que teria de mudar na concepção de educação?

Pacheco - O essencial seria que o Brasil compreendesse que não precisa ir ao estrangeiro procurar as suas soluções. Esse é outro absurdo. Quais são hoje os autores que influenciam as escolas? Vygotsky [Lev S. Vygotsky (1896-1934)], Piaget [Jean Piaget (1896-1980)]? Não vejo um brasileiro. Mas podem dizer: "E Paulo Freire?". Não vejo Paulo Freire em nenhuma sala de aula. Fala-se, mas não se faz.

Identifiquei, nos últimos anos, autores brasileiros da maior importância que o Brasil desconhece. Esse é outro absurdo. Quem é que ouviu falar de Eurípedes Barsanulfo (1880-1918)? De Tomás Novelino (1901-2000)? De Agostinho da Silva (1906-1994)? Ninguém fala deles. Como um país como este, que tem os maiores educadores que eu já conheci, não quer saber deles nem os conhece?

Há 102 anos, em 1907, o Brasil teve aquilo que eu considero o projeto educacional mais avançado do século 20. Se eu perguntar a cem educadores brasileiros, 99 não conhecem. Era em Sacramento, Minas Gerais, mas agora já não existe. O autor foi Eurípedes Barsanulfo, que morreu em 1918 com a gripe espanhola. Este foi, para mim, o projeto mais arrojado do século 20, no mundo.

UOL Educação - O que tinha de tão arrojado?

Pacheco - Primeiro, na época, era proibida a educação de moços e moças juntos. Só durante o governo Getúlio Vargas é que se pôde juntar os dois gêneros nos colégios. Ele [Barsanulfo] fez isso. Ele tinha pesquisa na natureza, tinha astronomia no currículo oficial. Não tinha série nem turma nem aula nem prova. E os alunos desse liceu foram a elite de seu tempo. Tomás Novelino foi um deles e Roberto Crema, que hoje está aí com a educação holística global, foi aluno de Novelino.

UOL Educação - Por que o senhor fala desses autores?

Pacheco - Digo isso para que o brasileiro tenha amor próprio, compreenda aquilo que tem para que não importe do estrangeiro aquilo que não precisa. É um absurdo ter tudo aqui dentro e ir pegar lá fora.

UOL Educação - Qual foi a maior utopia que o senhor viu?

Pacheco - O Brasil é um país de utopias, como a de Antônio Conselheiro e a de Zumbi dos Palmares. Fui para a história, para não falar em educação. Na educação, temos Agostinho da Silva, que é um utópico coerente, cuja utopia é perfeitamente viável no Brasil. Ou seja, é possível ter uma educação que seja de todos e para todos. O Brasil, dentro de uns 30 ou 40 anos, será um país bem importante pela educação. São os absurdos que têm de desaparecer, para dar lugar à concretização das utopias. Acredito nisso, por isso estou aqui.

Simone Harnik/UOL
Pacheco ministra curso no colégio Pueri Domus, na zona sul da capital

UOL Educação - Os professores são resistentes às mudanças?

Pacheco - Os professores são um problema e são a solução. Eu prefiro pensar naqueles professores que são a solução, conheço muitos que estão afirmando práticas diferentes.

UOL Educação - Práticas diferentes como a da Escola da Ponte?
Pacheco - Não são "como", mas inspiradas, com certeza. São práticas que fazem com que a escola seja para todos e proporcione sucesso para todos.

UOL Educação - Dentro da escola tradicional, onde ocorre o desperdício de recursos?

Pacheco - Se considerarmos o dinheiro que o Estado gasta por aluno, daria para ter uma escola de elite. Onde o dinheiro se desperdiça? Por que em uma escola qualquer, que tem turmas de 40 alunos, a relação entre o número de professores e de alunos é de um para nove? Por que os laudos e os atestados médicos são tantos? Porque a situação que se criou nas escolas é a do descaso. Esse é um absurdo.

UOL Educação - Onde mais ocorre o desperdício nas escolas?

Pacheco - O desperdício de tempo também é enorme em uma aula. Pelo tipo de trabalho que se faz, quando se dá aula, uma parte dos alunos não tem condições de perceber o que está acontecendo, porque não têm os chamados pré-requisitos, e se desliga. Há um outro conjunto de crianças que sabem mais do que o professor está explicando - e também se desliga. Há os que acompanham, mas nem todos entendem o que o professor fala. Em uma aula de 50 minutos, o professor desperdiça cerca de 20 horas. Se multiplicarmos o número de alunos que não aproveitam a aula pelo tempo, vai dar isso.

O desperdício maior tem a ver com o funcionamento das escolas. Os professores são pessoas sábias, honestas, inteligentes e que podem fazer de outro modo: não dando aula, porque dar aula não serve para nada. É necessário um outro tipo de trabalho, que requer muito estudo, muito tempo e muita reflexão.

UOL Educação - As famílias não estão acostumadas com escolas que não têm classe, professor ou disciplinas. Querem o conteúdo para o vestibular. Como se rompe com esse tipo de mentalidade?

Pacheco - Pode-se romper mostrando que é possível. Eu falo do que faço, e não de teorias. O que fiz por mais de 30 anos foi uma escola onde não há aula, onde não há série, horário, diretor. E é a melhor escola nas provas nacionais e nos vestibulares. Justamente por não ter aulas e nada disso.

UOL Educação - Por que uma escola que não tem provas forma alunos capazes de ter boas notas em provas e concursos?

Pacheco - Exatamente por ser uma escola, enquanto as que dão aulas não são. As pessoas têm de perceber que não é impossível. E mais, que é mais fácil. Posso afirmar, porque já fiz as duas coisas: estive em escolas tradicionais, com aulas, provas, com tudo igualzinho a qualquer escola; e estive também 32 anos em outra escola que não tem nada disso. É mais fácil, os resultados são melhores.

UOL Educação - Na concepção do senhor, o que é uma boa escola?

Pacheco - É a aquela que dá a todos condições de acesso, e a cada um, condições de sucesso. Sucesso não é só chegar ao conhecimento, é a felicidade. É uma escola onde não haja nenhuma criança que não aprenda. E isso é possível, porque eu sei que é. Na prática.

UOL Educação - O professor que está em uma escola tradicional tem espaço para fazer um trabalho diferente? O senhor vê espaço para isso?

Pacheco - Não só vejo, como participo disso. No Brasil, participei de vários projetos onde os professores conseguiram escapar à lógica da reprodução do sistema que lhe é imposto. Só que isso requer várias condições: primeiro, não pode ser feito em termos individuais; segundo, a pessoa tem de respeitar que os outros também têm razão. Se, dentro da escola, os processos começam a mudar e os resultados aparecem, os outros professores se aproximam. Não tem de haver divisionismo.

UOL Educação - O senhor acha que a mudança na estrutura da escola poderia partir do poder público ou depende da base?

Pacheco - Acredito que possa partir do poder público, mas duvido que aconteça. As secretarias têm projetos importantes, mas são de quatro anos. Uma mudança em educação precisa de dezenas de anos. Precisa de continuidade. E isso é difícil de assegurar em uma gestão. Precisa partir de cada unidade escolar e do poder público juntos.

FONTE: http://educacao.uol.com.br/ultnot/2009/06/30/ult105u8320.jhtm





José Pacheco e a Escola da Ponte
O educador português conta como é a Escola da Ponte, em que não há turmas, e diz que quem quer inovar deve ter mais interrogações que certezas

José Pacheco não é o primeiro — e nem será o último — a desejar uma escola que fuja do modelo tradicional. Ao contrário de muitos, no entanto, o educador português pode se orgulhar por ter transformado seu sonho em realidade. Há 28 anos ele coordena a Escola da Ponte. Apesar de fazer parte da rede pública portuguesa, a escola de ensino básico, localizada a 30 quilômetros da cidade do Porto, em nada se parece com as demais.



A Ponte não segue um sistema baseado em seriação ou ciclos e seus professores não são responsáveis por uma disciplina ou por uma turma específicas. As crianças e os adolescentes que lá estudam — muitos deles violentos, transferidos de outras instituições — definem quais são suas áreas de interesse e desenvolvem projetos de pesquisa, tanto em grupo como individuais.

A cada ano, as crianças e os jovens criam as regras de convivência que serão seguidas inclusive por educadores e familiares. É fácil prever que problemas de adaptação acontecem. Há professores que vão embora e alunos que estranham tanta liberdade. Nada, no entanto, que faça a equipe desanimar.

O sistema tem se mostrado viável por pelo menos dois motivos: primeiro, porque os educadores estão abertos a mudanças; segundo, porque as famílias dos alunos apóiam e defendem a escola idealizada por Pacheco.

Quando jovem, esse educador de fala mansa não pensava em lecionar. Queria ser engenheiro eletrônico. Mas uma questão o inquietava: por que a escola ainda reproduzia um modelo criado há 200 anos? Na busca por uma resposta, se apaixonou pelo magistério. "Percebi que na engenharia teria menos a descobrir, enquanto na educação ainda estava tudo por fazer." Desse "tudo" de que tem se incumbido o professor Zé, como gosta de ser chamado, é que trata a entrevista a seguir, concedida à ESCOLA em São Paulo.

A Escola da Ponte é bem diferente das tradicionais. Como ela funciona?
JOSÉ PACHECO Lá não há séries, ciclos, turmas, anos, manuais, testes e aulas. Os alunos se agrupam de acordo com os interesses comuns para desenvolver projetos de pesquisa. Há também os estudos individuais, depois compartilhados com os colegas. Os estudantes podem recorrer a qualquer professor para solicitar suas respostas. Se eles não conseguem responder, os encaminham a um especialista.

Existem salas de aula?
PACHECO Não há salas de aula, e sim lugares onde cada aluno procura pessoas, ferramentas e soluções, testa seus conhecimentos e convive com os outros. São os espaços educativos. Hoje, eles estão designados por área. Na humanística, por exemplo, estuda-se História e Geografia; no pavilhão das ciências fica o material sobre Matemática; e o central abriga a Educação Artística e a Tecnológica.

A arquitetura mudou para acompanhar o sistema de ensino?
PACHECO Não. Aliás, isso é um problema. Nosso sonho é um prédio com outro conceito de espaço. Temos uma maquete feita por 12 arquitetos, ex-alunos que conhecem bem a proposta da escola. Esse projeto inclui uma área que chamo de centro da descoberta, onde compartilharemos o que sabemos. Há também pequenos nichos hexagonais, destinados aos pequenos grupos e às tarefas individuais. Estão previstas ainda amplas avenidas e alguns cursos d'água, onde se possa mergulhar os pés para conversar, além de um lugar para cochilar. As novas tecnologias da informação devem estar espalhadas por todos os lados para ser democraticamente utilizadas pela comunidade, o que já conseguimos.

Os professores precisam de formação específica para lecionar lá?
PACHECO Não. Eles têm a mesma formação que os de outras instituições. O diferencial é que sentem uma inquietação quanto à educação e admitem existir outras lógicas. Nossa escola é a única no país que pode escolher o corpo docente. Os candidatos aparecem geralmente como visitantes e perguntam o que é preciso para dar aulas lá. Digo apenas para deixarem o nome. No fim de cada ano fazemos contato. Hoje somos 27, cada um com suas especializações.

Como os novos professores se adaptam à proposta da escola?
PACHECO Há profissionais que estiveram sozinhos em sala durante anos e quando chegam constatam que sua formação e experiência servem para nada. De cada dez que entram, um não agüenta. Outros desertam e regressam depois. Mas nós também, por vezes, temos que nos adaptar. Há dois anos recebemos muitas crianças e professores novos, não familiarizados com a nossa proposta. Apenas a quinta parte do corpo docente já estava lá quando isso aconteceu. Passamos a conviver com mestres que sabiam dar aula e estudantes que sabiam fazer cópias. Foi necessário dar dois ou três passos para trás para que depois caminhássemos todos juntos. Precisamos aceitar o que os outros trazem e esperar que eles acreditem em nossas idéias. Essa é a terceira vez que passamos por isso.

Qual o perfil dos alunos atendidos pela Escola da Ponte?
PACHECO Eles têm entre 5 e 17 anos. Cerca de 50 (um quarto do total) chegaram extremamente violentos, com diagnósticos psiquiátricos e psicológicos. As instituições de inserção social que acolhem crianças e jovens órfãos os encaminham para as escolas públicas. Normalmente eles acabam isolados no fundo da classe e, posteriormente, são encaminhados para nós. No primeiro dia, chegam dando pontapés, gritando, insultando, atirando pedras. Algum tempo depois desistem de ser maus, como dizem, e admitem uma das duas hipóteses: ser bom ou ser bom.

Como os estudantes vindos de outras escolas se integram a um sistema tão diferente?
PACHECO Não é fácil. Há crianças e jovens que chegam e não sabem o que é trabalhar em grupo. Não conhecem a liberdade, e sim, a permissividade. Não sabem o que é solidariedade, somente a competitividade. São ótimos, mas ainda não têm a cultura que cultivamos. Quando deparam com a possibilidade de definir as regras de convivência que serão seguidas por todos ou não decidem nada ou o fazem de forma pouco ponderada. Em tempos de crise, como agora, em que muitos estão nessa situação, precisamos ser mais diretivos. Só para citar um exemplo, recebemos um garoto de 15 anos que tinha agredido seu professor e o deixado em estado de coma. Como um jovem assim pode, de imediato, participar da elaboração de um sistema de direitos e deveres?

A escola nem sempre seguiu uma proposta inovadora. Como ocorreu a transformação?
PACHECO Até 1976, a escola era igual a qualquer outra de 1ª a 4ª série. Cada professor ficava em sua sala, isolado com sua turma e seus métodos. Não havia comunicação ou projeto comum. O trabalho escolar era baseado na repetição de lições, na passividade. Naquele ano, havia três educadores e 90 estudantes. Em vez de cada docente adotar uma turma de 30, juntamos todos. Nosso objetivo era promover a autonomia e a solidariedade. Antes disso, porém, chamamos os pais, explicamos o nosso projeto e perguntamos o que pensavam sobre o assunto. Eles nos apoiaram e defendem o modelo até hoje.

Qual é a relação dos pais com a escola?
PACHECO Eles participam conosco de todas as decisões. Se nos rejeitarem, teremos de procurar emprego em outro lugar. Também defendem a escola perante o governo. Neste momento, os pais estão em conflito com o Ministério da Educação. Ao longo desses quase 30 anos, quiseram acabar com nosso projeto. Eu, como funcionário público, sigo um regime disciplinar que me impede de tomar posições que transgridam a lei, mas o ministro não tem poder hierárquico sobre as famílias. Portanto, se o governo discordar de tudo aquilo que fazemos, defronta-se com este obstáculo: os pais. Eles são a garantia de que o projeto vai continuar.

Como sua escola é vista em Portugal?
PACHECO Há uma grande resistência em aceitar o nosso modelo, que é baseado em três grandes valores: a liberdade, a responsabilidade e a solidariedade. Algumas pessoas consideram que todos precisam ser iguais e que ninguém tem direito a pensamento e ação divergentes. Há quem rejeite a proposta por preconceito, mas isso nós compreedemos porque também temos os nossos. A diferença é que nós nunca colocamos em cheque o trabalho dos outros. Consideramos que quem nos ataca faz isso porque não foi nosso aluno e não aprendeu a respeitar o ponto de vista alheio.

Qual é o segredo de sucesso da proposta seguida pela Ponte?
PACHECO Nós acreditamos que um projeto como o nosso só é viável quando todos reconhecem os objetivos comuns e se conhecem. Isso não significa apenas saber o nome, e sim ter intimidade, como em uma família. É nesse ponto que o projeto se distingue. O viver em uma escola é um sentimento de cumplicidade, de amor fraterno. Todos que nos visitam dizem que ficam impressionados com o olhar das pessoas que ali estão, com o afeto e a palavra terna que trocam entre si. Não sei se estou falando de educação ou da minha escola, mas é isso o que acontece lá.

O modelo da Escola da Ponte pode ser seguido por outras escolas?
PACHECO Não defendo modelos. A Escola da Ponte fez o que as outras devem e podem fazer, que é produzir sínteses e não se engajar em um único padrão. Não inventamos nada. Estamos em um ponto de redundância teórica. Há muitas correntes e quem quer fazer diferente tem de ter mais interrogações do que certezas. Considero que na educação tudo já está inventado. A Escola da Ponte não é duplicável e não há, felizmente, clonagem de projetos educacionais.

Hoje a escola pode funcionar sem o senhor?
PACHECO Fui e continuo sendo um intermediário. Não tenho mérito por isso, apenas cumpro a minha missão. Vou me afastar dentro de um ano e estou amargamente antecipando essa despedida. Todo pai tem de deixar o filho andar por si próprio e, nesse momento, a Ponte caminha sozinha. Depois quero continuar desassossegando os espíritos em lugares onde há gente generosa, que só precisa de um louco com a noção da prática, como eu. Agora ninguém pode dizer que uma experiência como a da Escola da Ponte não aconteceu, porque ela existe e provamos que é possível.



Quer saber mais?


Quando Eu For Grande, Quero Ir à Primavera, José Pacheco, 109 págs., Ed. Didática Suplegraf, tel. (11) 6941-0599, 19,60 reais

Sozinhos na Escola, José Pacheco, 115 págs., Ed. Didática Suplegraf, 19,90 reais



Escola dos sonhos existe há 25 anos
em Portugal

"Será indispensável alterar a organização das escolas, interrogar práticas educativas dominantes. É urgente interferir humanamente no íntimo das comunidades humanas, questionar convicções e, fraternalmente, incomodar os acomodados", afirma José Pacheco.

É uma escola muito engraçada, não tem salas de aula, não tem turmas divididas por faixa etária, não tem testes, não tem nada. Nada da escola tradicional que conhecemos. É uma escola feita com muito esmero em Vila das Aves, Portugal.

Na Escola da Ponte, as crianças decidem o que e com quem estudar. Em vez de classes, grupos de estudo. Independente da idade, o que as une é a vontade de estar juntas e de juntas aprender. Novos grupos surgem a cada projeto ou tema de estudo.

Quem ouve falar dela pela primeira vez hesita em acreditar. Surpresa maior só mesmo de quem a conheceu nos anos 70. A Escola da Ponte era uma escola muito engraçada, não tinha bancos, não tinha mesas, não tinha nada. O banheiro sequer porta tinha.

"Satisfazer as necessidades biológicas mais elementares constituía um teste de entreajuda: as alunas iam lá fora em grupos de cinco, ou seis, fazia-se a parede e a porta num círculo humano em torno da necessitada", lembra José Francisco Pacheco, diretor da Escola da Ponte.

Hoje, os alunos têm um espaço para publicar pequenos anúncios de oferta e procura de ajuda para realização de pesquisas escolares, reúnem-se semanalmente em assembléia para debater os problemas da escola e redigem seus direitos e deveres.

O que motivou a busca de uma forma inovadora de ensinar e aprender que resultou na criação da Escola da Ponte e quando isso se deu?
"...não passa de um grave equívoco a ideia de que se poderá construir uma sociedade de indivíduos personalizados, participantes e democráticos enquanto a escolaridade for concebida como um mero adestramento cognitivo".
Em 1976, a Escola da Ponte era um arquipélago de solidões. Os professores remetiam-se para o isolamento físico e psicológico, em espaços e tempos justapostos. Entregues a si próprios, encerrados no refúgio da sua sala, a sós com os seus alunos, o seu método, os seus manuais, a sua falsa competência multidisciplinar, em horários diferentes dos de outros professores, como poderiam partilhar, comunicar, desenvolver um projecto comum?
O trabalho escolar era exclusivamente centrado no professor, enformado por manuais iguais para todos, repetição de lições, passividade. As crianças que chegavam à escola com uma cultura diferente da que aí prevalecia eram desfavorecidas pelo não reconhecimento da sua experiência sociocultural. Algumas das crianças que acolhíamos transferiam para a vida escolar os problemas sociais dos bairros pobres onde viviam. Exigiam de nós uma atitude de grande atenção e investimento no domínio afectivo e emocional. Há vinte e cinco anos, tomámos também consciência de novas e maiores dificuldades. Por exemplo, de que não passa de um grave equívoco a ideia de que se poderá construir uma sociedade de indivíduos personalizados, participantes e democráticos enquanto a escolaridade for concebida como um mero adestramento cognitivo.
Se os pais eram chamados à escola, pedia-se castigo para o filho ou contributos para reparações urgentes.
Em 1976, compreendemos que precisávamos mais de interrogações que de certezas. E empreendemos um caminho feito de alguns pequenos êxitos e de muitos erros, dos quais colhemos (e continuaremos a colher) ensinamentos, após termos definido a matriz axiológica de um projecto e objectivos que, ainda hoje, nos orientam: concretizar uma efectiva diversificação das aprendizagens tendo por referência uma política de direitos humanos que garantisse as mesmas oportunidades educacionais e de realização pessoal para todos, promover a autonomia e a solidariedade, operar transformações nas estruturas de comunicação e intensificar a colaboração entre instituições e agentes educativos locais.

Na Escola da Ponte não há aulas em que um professor ensine conteúdos estanques. Também não há salas de aula ou classes separadas por anos ou idades. O que foi mantido da estrutura tradicional de uma escola?
Na Escola da Ponte, como em outros lugares, será indispensável alterar a organização das escolas, interrogar práticas educativas dominantes. É urgente interferir humanamente no íntimo das comunidades humanas, questionar convicções e, fraternalmente, incomodar os acomodados. Apesar dos progressos verificados ao nível da teoria (e até mesmo contra eles), subsiste uma realidade que as excepções não conseguem escamotear: no domínio das práticas, o nosso século corre o risco de se completar sem ter conseguido concretizar sequer as propostas do fim do século que o precedeu.
Viveremos o fim do "século da criança" ou apenas o princípio da Escola? Desde há séculos, somos destinatários de mensagens que raramente nos dispomos a decifrar. O que acontece é um regresso cíclico às mesmas grandes interrogações. Todos os movimentos reformadores se assemelham na rejeição do passado. Mas a especulação teórica sem caução da prática engendra apenas reformulações de uma utopia sempre por concretizar.
A resposta objectiva a esta pergunta é simples: hoje, somente restam vestígios da "estrutura tradicional", que transformámos em caboucos [cova ou escavação em que se assentam os alicerces de uma construção] sobre os quais assentámos os andaimes de uma escola que já não é herdeira ou tributária de necessidades do século XIX.

Crianças de que faixa etária convivem e aprendem juntas no mesmo espaço?
"O critério de formação dos grupos é o afectivo e o afecto não tem idade...".
Após uma primeira fase - chamada de "iniciação" - as crianças convivem e aprendem nos mesmos espaços, sem consideração pela faixa etária, mas apenas pela vontade de estar no mesmo grupo. O critério de formação dos grupos é o afectivo e o afecto não tem idade... Já o mestre Agostinho da Silva dizia que "os grupos devem constituir-se à vontade dos alunos, para que haja coesão e entusiasmo pelo trabalho, alegria criadora de quem se sente a construir um
universo".

Além disso, a Escola da Ponte trabalha com uma pedagogia que inclui crianças portadoras de deficiências no mesmo ambiente?
Há 25 anos, a educação das crianças ditas com necessidades educativas especiais constituía mais um problema dentro do problema. A colocação de crianças com necessidades específicas junto dos ditos normais não era medida suficiente para se fazer o que recentemente se designa por inclusão. A inclusão não se processaria em abstracto, mas passaria por uma gestão diferente de um mesmo currículo, para que os alunos não interiorizassem incapacidades, para que não se vissem cada vez mais negativamente como alunos e depois como pessoas. Frequentemente, sob o rótulo e o estigma da diferença, priva-se a "criança diferente" (ainda que inconscientemente) de experiências que lhe permitiriam ganhar consciência de si como ser social-com-os-outros.
Hoje, em cada grupo há sempre um aluno "especial". Se os professores, por qualquer motivo, em determinado momento, não podem acompanhar directamente o trabalho de uma dessas crianças, logo um colega atento se disponibiliza para a ajudar. O Marco era um menino rotulado de filho de pai incógnito. Sofria por não ter um pai como os outros meninos. O André era um menino rotulado de mongolóide. Sofria de "necessidades educativas especiais", que o isolavam dos outros meninos. Até que, um dia, mudou de escola, foi acolhido num grupo e deixou de ter rótulo. O Marco e os seus amigos já tinham descoberto o valor do trabalho cooperativo. Quando a Ana "foi para outra escola", deixou a Sandrina entregue aos cuidados da Maria do Céu. E o Marco envolvia o André num novelo de atenção que operava milagres no aprender com os outros.
As crianças estavam absorvidas no quotidiano labor de aprender e de aprender a ser. O professor ia passando entre os grupos, disponível para o que fosse preciso. Deteve-se junto àquele, pois havia detectado a presença de estranhos instrumentos mediadores de aprendizagem. Não conteve a curiosidade. Pediu desculpa ao Marco pela interrupção e perguntou que papéis eram aqueles.
"Sabe, professor, ontem estive a ajudar o André a perceber o que era um nome. E ele parece que ficou na mesma..." — respondeu o Marco. "E então?" — insistiu o professor. "Fui p'ra casa a cismar, a cismar... E pensei em fazer umas fichas e fiz as fichas. Trouxe-as hoje e olhe que o André, agora, parece que já percebeu tudo. Não acha?" O professor não conseguiu articular a resposta. Passou a mão na cabeça do Marco. Voltou as costas ao grupo, porque a verdade é que os homens também choram. Citando, de novo, Agostinho da Silva: "Todos vamos ter que ser professores de todos e cada um dos que sabem um pouco mais ensinará os que sabem um pouco menos".

No padrão criado pela Escola da Ponte, os alunos decidem o que estudar, montam grupos de interesse e trabalham orientados por professores, não é?
Efectivamente, são os alunos que decidem. E os professores estão lá, atentos e disponíveis. Quando compreendemos que cada criança é um ser único e irrepetível, que seria errado imaginar a coincidência de níveis de desenvolvimento, concluímos que não seria inevitável pautar o ritmo dos alunos pelo ritmo de um manual ou pela homogeneização operada pelos planos de aula destinados a um hipotético aluno médio. E avançámos com uma outra organização da escola, uma outra relação entre os vários grupos que constituem a equipa educativa (pais, professores, alunos, pessoal auxiliar), um outro modo de reflectir as práticas. Passou-se de objectivos de instrução a objectivos mais amplos de educação. Este projecto sugere um modelo de escola que já não é a mera soma de actividades, de tempos lectivos, de professores e alunos justapostos. É uma formação social em que convergem processos de mudança desejada e reflectida, um lugar onde conscientemente se transgride, para libertar a escola de atavismos, para a repensar. Não é um projecto de um professor, mas de uma escola, pois só poderemos falar de projecto quando todos os envolvidos forem efectivamente participantes, quando todos se conhecerem entre si e se reconhecerem em objectivos comuns.
Não há escolas-modelo, mas há referências que poderão ser colhidas neste projecto como em tantos outros anonimamente construídos, cujo intercâmbio urge viabilizar. Nos últimos cinco ou seis anos, outras escolas se acercaram de nós: umas movidas pela curiosidade; outras, por outras boas razões. Poderemos já falar de uma "rede de escolas", que também já chega ao Brasil.

Claramente, a Escola da Ponte parece-me baseada na pesquisa. Ela suprimiu completamente a instrução?
"Não há um professor para cada turma, nem uma distribuição de alunos por anos de escolaridade. Essa subdivisão foi substituída, com vantagens, pelo trabalho em grupo heterogéneo de alunos.".
Em 1984, Olivier Reboul afirmava que "ensinar não é inculcar, nem transmitir, é fazer aprender". Tudo é composto de mudança e também a Escola toma sempre novas qualidades. A componente instrução está sempre disponível e presente... mas só acontece quando o aluno quer. No nosso projecto, é o sujeito que se constrói na atribuição de significado ao conhecimento colectivamente produzido. Os professores acrescentaram às tradicionais dificuldades de aprendizagem dos alunos o reconhecimento das suas próprias dificuldades de ensino. E procuram concretizar um ensino diferenciado onde um mesmo currículo para todos os alunos é desenvolvido de modo diferente por cada um. Não há um professor para cada turma, nem uma distribuição de alunos por anos de escolaridade. Essa subdivisão foi substituída, com vantagens, pelo trabalho em grupo heterogéneo de alunos. Dentro de cada grupo, a gestão dos tempos e espaços permite momentos de trabalho em pequeno grupo, de participação no colectivo, de "ensino mútuo", momentos de trabalho individual... que passam sempre por actividades de pesquisa.

Em complemento à pergunta anterior, eu lhe perguntaria como se dá a transmissão de informações para que as crianças tenham elementos para fazer suas pesquisas e reelaborar seu conhecimento. O professor é sempre um orientador ou, em certas ocasiões, também assume o papel de instrutor? As dúvidas a que os momentos de pesquisa não logram dar resposta são resolvidas no encontro com um professor (a "aula directa", como os miúdos a designam), num encontro de pequeno grupo, quando os alunos o solicitam. Remetemos para plano secundário a função transmissora. Os professores só poderão dar respostas se os alunos lhes dirigirem perguntas. Só participa do encontro quem o deseja e o explicita.
A função de instruir é subsidiária, caracteriza a proto-história de uma escola aprendente. Herbert Read disse que "a Educação, no sentido mais amplo, como crescimento guiado, pode assegurar que a vida seja vivida em toda a sua natural espontaneidade criadora e em toda a plenitude sensorial, emocional e intelectual." Sem deixar de "dar o programa", nós vamos além do aprender a ler, escrever e contar, porque educar é mais do que preparar alunos para fazer exames, é ajudar as crianças a entenderem o mundo e a realizarem-se como pessoas, muito para além do tempo de escolarização.

E no caso da alfabetização? Em seu artigo, o senhor Rubem Alves conta que uma menina lhe explicou que, na Escola da Ponte, "aprende-se a ler lendo frases inteiras". Como a Escola da Ponte vê a alfabetização e como as crianças adquirem seus primeiros conhecimentos em língua escrita?
Também neste capítulo, nós nada inventámos. Apenas retomámos contributos de pedagogos como Freinet. As crianças aprendem a ler naturalmente, como aprendem a falar e a escrever, e cada qual no seu próprio momento. Algumas, ao cabo de dois ou três meses, adquirem autonomia na leitura e na escrita. Vão através de histórias, de frases, da vida, em busca do "pássaro encantado (do Rubem Alves) que ama a liberdade e voa para longe, guardando nas penas as cores dos lugares por onde passa e regressando, com as saudades que são o vento do amor, ao lugar onde uma menina o aguarda, sabendo que a menina não vai fechar a gaiola".

Novamente sobre pesquisas... Qual é a maior fonte de informação utilizada pelos alunos? As pesquisas se dão prioritariamente na Internet ou em bibliotecas?
Em ambas. Os alunos gerem, quase em total autonomia, os tempos e os espaços educativos. Escolhem o que querem estudar e com quem. Como não há manuais iguais para todos, a biblioteca e as novas tecnologias de informação e comunicação são locus de encontro, de procura e de troca de informação. Recorre-se, por vezes, às bibliotecas da autarquia, de familiares, de vizinhos, ou de associações locais. E, como é evidente, os professores são também uma fonte permanente de informação, segurança, interrogações, afectos...
Mais importante que os lugares e as fontes será compreender as dimensões do desenvolvimento do sentido crítico (também relativamente à recolha e selecção de informação) e do fomento da partilha da informação, no sentido da comunicação e do desenvolvimento de uma cultura de cooperação.


Um dos pontos que a Escola da Ponte valoriza é a autonomia de seus alunos. Que atitude os professores e a escola tomam em caso de desinteresse dos alunos ou não-cumprimento das tarefas ou dos prazos?
Se acontecer desinteresse por parte de um aluno, a escola estará doente, estará doente o aluno, ou estarão ambos enfermos. Bastará determinar a etiologia, buscar remédio e verificar os efeitos do tratamento...
A Geninha andava de mal com as amigas e com a vida. E a professora Rosa andava preocupada com aquela tristeza de muitos dias. Naquela manhã, na verificação dos trabalhos, deixou no caderno da Geninha um ponto de interrogação. Quando voltasse a passar pelo grupo, o sinal de pontuação interromper-lhe-ia a lufa-lufa [grande pressa] e recordar-lhe-ia a necessidade de meter conversa com a Geninha e de tirar aquela tristeza a limpo. Decorridos breves minutos, lá voltou. No lugar da interrogação que deixara, havia agora duas interrogações simetricamente geminadas. Um coração de linha curva a tinta azul à direita e outra linha feita de lápis à esquerda. E um ponto - que agora deveria ser final - foi um ponto de partida de palavras mansas e algumas lágrimas. A Geninha só precisava de desabafar.

Algo que parece ser muito incentivado é a formação de uma cadeia de solidariedade entre os alunos. Há dois espaços - "Tenho necessidade de ajuda em" e "Posso ajudar em" - em que as crianças escrevem pequenos anúncios à procura de ajuda para dificuldades em suas pesquisas. Como esse espaço funciona?
Nos idos de setenta, ainda no tactear de um projecto, os miúdos chamavam ao trabalho de pesquisa que já iam fazendo "aprender em liberdade e com categoria". E bem sabiam o que isso significava. Nesse tempo, os professores também já trabalhavam em liberdade e com (alguma) categoria. Como? É fácil de explicar...
Atente-se num excerto [trecho] de entrevista a uma professora recentemente integrada na equipa: "É o trabalho de equipa que nos faz superar o desgaste, que nos ajuda a ultrapassar os obstáculos. Facilitador é o facto de não estarmos sozinhos numa sala, termos uma perspectiva de toda a escola e não só daquele grupo que nós controlamos. Num projecto como este, a pessoa não tem aquela frieza, aquela solidão, a pessoa faz tudo com mais gosto, é mais ela e dá muito mais de si, claro. Sinto-me em família, completamente."
Tal como a professora, os alunos também se sentem "em família". E, em família, é suposto o amor e a inter-ajuda.

Outro espaço muito interessante são os computadores "Acho Bom" e "Acho Mal" em que os alunos expressam sua opiniões sobre as escolas. Esses instrumentos foram pensados para exercer que papel na vida quotidiana da escola?
Entre outros, o do senso crítico, mas não só... As reuniões semanais da Assembleia e os debates do fim de cada dia de escola também se alimentam das "queixas e sugestões".

As crianças escreveram um documento com seus direitos e deveres. Que aspectos desses documentos o senhor destacaria?
Clique para ampliar a declaração de direitos e deveres dos alunos da Escola da Ponte.
Talvez relevasse o facto de não constarem muitas proibições e de o documento que os próprios alunos propõem e aprovam ser a Magna Carta que lhes permite libertarem-se da tutela dos professores e serem dignos do exercício quotidiano da liberdade na responsabilidade. As nossas crianças não são educadas apenas para a autonomia, mas através dela, nas margens de uma liberdade matizada pela exigência da responsabilidade. Buscamos uma escola de cidadãos indispensável ao entendimento e à prática da Democracia. Procuramos, no mais ínfimo pormenor da relação educativa, formar o cidadão democrático e participativo, o cidadão sensível e solidário, o cidadão fraterno e tolerante.

Os alunos reúnem-se semanalmente em assembléia. O que pode ser tratado nessas ocasiões?
Para exercer a solidariedade é necessário compreendê-la, vivê-la em todo e qualquer momento. Na Ponte, cada criança age como participante solidário de um projecto de preparação para a cidadania no exercício da cidadania. Foi por isso que se constituiu, há cerca de vinte anos, a Assembleia. É por aí que passa a participação das crianças na organização interna da sua escola.
Os miúdos sabem que "a Assembleia é uma coisa importante", que "os alunos e os professores reúnem-se e discutem juntos os problemas da escola", que "aprendemos a respeitar regras e a respeitar-nos uns aos outros e a decidir o que é melhor para todos". Quando uma professora, em plena assembleia, perguntou à Catarina (sete anos de idade) "Quando acontece cidadania?", a pequena respondeu prontamente: "Acontece sempre". E, quando a professora insistiu, pedindo que a aluna explicitasse a resposta, esta acrescentou: "É quando eu levanto o braço para pedir a palavra ou pedir ajuda, quando me levanto e arrumo a cadeira sem fazer barulho, quando ajudo os meus colegas no grupo, quando apanho lixo do chão e o deito no caixote do lixo, quando ouço o meu colega com atenção, quando estou na Assembleia..."

Além do que pretendem estudar, o que as crianças podem decidir sobre a organização interna da escola?
"A educação na cidadania reassumiu a sua completa expressão: os miúdos já podem dirigir propostas aos seus representantes eleitos".
Em meados de Outubro de 2000, ficou concluído mais um processo de eleição e instalação da Mesa da Assembleia de Escola. A educação na cidadania - cerne quotidiano do nosso projecto - reassumiu a sua completa expressão: os miúdos já podem dirigir propostas aos seus representantes eleitos, reunir-se em debate (todos os dias) e em assembleia (à Sexta-feira).
O "livro da quinzena" (sempre coerente com os projectos que estão a ser desenvolvidos por toda a escola em determinada quinzena) constitui-se em referência para a produção escrita. O eventual leitor poderá ser induzido a pensar que, pelo conteúdo e estilo, o texto a seguir transcrito terá o "dedinho do professor"... Efectivamente, não tem. Acrescentaremos que foi um dos vários textos que, hoje, enquanto redigia este artigo, encontrei na caixinha dos "textos inventados" - caixa dos textos que os alunos redigem quando e como desejam -, escrito pela Cláudia, que tem oito anos de idade. Vejamos alguns excertos:
"Caminhos da liberdade
Como a nossa escola tenta ser um exemplo de cidadania, temos um livro da quinzena que nos fala, exactamente, desse tema. É um livro chamado "A cidadania explicada aos jovens e aos outros", escrito pelo poeta José Jorge Letria. Diz-nos que, todos os dias, fazemos coisas que têm a ver com cidadania. Que uma pessoa só é bom cidadão quando tem capacidade para se orientar pelos direitos e deveres que estão nos documentos como a Constituição da República (...) A solidariedade é uma maneira de ser bom cidadão. Nós temos solidariedade quando ajudamos a dar melhores condições às vítimas das guerras, quando ajudamos alguém a atravessar a rua (...) Com o que estamos a aprender com este livro, resta-me concluir que a cidadania é uma forma de participar na vida colectiva e de saber ter consciência para melhorar a vida dos outros." Ou, como escreveu a Francisca (de oito anos) num outro "texto inventado", "ser cidadão é, acima de tudo, respeitar os outros."

É verdade que as crianças organizam tribunais para julgar os casos de indisciplina?
Em 1998, o tribunal foi substituído por uma "Comissão de Ajuda" (por decisão da Assembleia!) com composição e funções muito diferentes. O velho e ineficaz "castigo" foi substituído pelo "ficar a reflectir" e pela ajuda de "fadas orianas" (quem já leu o livrinho da Sophya do Mello Breyner saberá ao que as crianças se referem).
Voltemos à "caixinha dos segredos". Como o objectivo dos objectivos é fazer das crianças pessoas felizes, foi instituída uma "caixinha dos segredos". É aí que a pesquisa das almas inquietas (indisciplinadas?) começa. Na caixa de papelão, os alunos deixam recados, cartas, pedidos de ajuda. A "caixinha dos segredos" ensina os professores a reaprender. É que nem sempre o que parece ser "indisciplina" o é. Os "recados-segredos" provam-no: "Todas as manhãs, o Arnaldo já chega cansado de duas horas de trabalho. Antes de rumar à escola, o Rui foi ao lavrador buscar o leite, levou os irmãos mais pequenos ao infantário, fez os recados da Dona Alice, arrumou a casa toda. O Carlos falta quase todas as tardes. O pai manda-o distribuir por toda a vila as folhas que dão notícia dos falecimentos da véspera, ou tem que carregar as alfaias dos funerais".
O tempo amareleceu as folhas dos "recados" onde as crianças deixaram ficar pedaços de vida. Aos nove anos, o Fernando disse o que queria ser quando fosse grande, escreveu os projectos do seu futuro para sempre destruídos num estúpido acidente na mota que ele comprara com os primeiros salários de tecelão. Outros não chegaram a adultos por se deixarem envolver nas teias que a droga tece. Houve também quem abandonasse a escola e optasse pelas lições que a escola da vida oferece. Haverá ainda alguém que ouse falar de "indisciplina" nas escolas?
Confesso a minha completa ignorância, de indisciplina nada sei. Sei apenas de crianças que dão lições de autodisciplina na sua escola. Sei de crianças que não entendem a indisciplina do gritar mais alto que o próximo, nas assembleias de adultos, porque na sua assembleia semanal erguem o braço quando pretendem intervir. Sei de crianças de seis, sete anos, que sabem falar e calar, propor e acatar decisões. São crianças capazes de expor, com serenidade, conflitos e de, serenamente, encontrar soluções. São cidadãos de tenra idade que, no exercício de uma liberdade responsavelmente assumida, instituíram regras que fazem cumprir no seu quotidiano. Poderão continuar a chamar-lhes alunos "utópicos", que nem por isso eles deixarão de existir.
A "indisciplina" é a filha dilecta do autoritarismo e da permissividade. A disciplina a que me refiro é a liberdade que, conscientemente exercida, conduz à ordem; não é a ordem imposta que nega a liberdade. Como poderemos pensar em controlar as águas revoltas de um rio, se nos esquecemos das margens que as comprimem?

Finalmente, sou levado a perguntar sobre a participação dos pais. Como é o relacionamento e o intercâmbio entre pais e escola? Que tipo de contribuição eles dão à escola?
A concepção e desenvolvimento de um projecto educativo de escola é um acto colectivo e só tem sentido no quadro de um projecto local de desenvolvimento. Um projecto consubstanciado numa lógica comunitária pressupõe ainda uma profunda transformação cultural. O sucesso dos alunos depende da solidariedade exercida no seio de equipas educativas, que facilita a compreensão e a resolução de problemas comuns. Em 1976, os pais não apareciam na escola, mas acreditávamos que seria possível estabelecer comunicação com as famílias dos alunos, se os pais não fossem chamados apenas para escutarem queixas ou contribuírem para reparações urgentes. Questionávamo-nos por que razão eles iam à igreja, ao estádio, ao café... e não vinham à escola. Quando encontrámos resposta, ajudámos os pais dos alunos a fundar uma associação num tempo em que ainda não havia leis para as regular. A associação de pais é hoje um interlocutor sempre disponível, um parceiro indispensável. Mas a colaboração dos pais não se restringe às actividades promovidas pela sua associação. No início de cada ano, todos os encarregados de educação participam num encontro de apresentação do Plano Anual. Mensalmente, ao sábado de tarde, os projectos são avaliados com o seu contributo. E há sempre um professor disponível para o atendimento diário, se algum pai o solicita.
A prática diz-nos, ainda hoje, que os pais têm dificuldade em conceber uma escola diferente daquela que frequentaram quando alunos mas que, quando esclarecidos e conscientes, aderem e colaboram.

FONTE: REVISTA NOVA ESCOLA, Edição 171 | Abril 2004